quinta-feira, 1 de abril de 2010

Vovó Lydia

Ela é mãe da minha mãe. Foi parte integrante da minha infância, com as inúmeras noites dormidas na Gávea com minhas irmãs (e às vezes minha prima), e piscina no dia seguinte. Com todas as pequenas coisas que casa de vó sempre tem, também por influência do meu querido Vovô Samy, que já se foi. A gente tinha um levro quando era pequena, que chamava "Casa de Vó é Sempre Domingo". Achava aquilo genial (e era, mesmo - uma verdade absoluta).

Outra particularidade da minha avó são suas habilidades culinárias. Passar um tempo na casa dela era observar a delicada preparação de centenas de burrecas, que podiam ser de carne, queijo, arroz, berinjela. As MELHORES burrecas. Até hoje eu não consigo comer nenhuma outra e achar gostosa. Idem para o cheesecake. Minha vó tem a receita mais maravilhosa de cheesecake, feita com ricota ao invés de cream cheese - é uma coisa LEVE! Depois eu descobri que tortas de ricota desse tipo são comuns na Itália, e faz sentido ser essa a receita que ela usa. Afinal, sua família veio da Turquia, e as influências são grandes. Comemos muita berinjela, derramamos mel em comidas salgadas, temos arroz à mesa em todas as refeições e nos deliciamos com pratos de espinafre (fritadas, ovo frito com espinafre...), doces feitos com nozes. Tudo influência mediterrânea, não é mesmo? Vovó Lydia participou fortemente da construção dos hábitos alimentares da família.

Por conta dela, nos tornamos super-exigentes em se tratando de comida. Além das burrecas e do cheesecake, não consigo curtir nenhum quiche que não seja dela... acho todos pesados, grosseiros. Sua calda de chocolate (pra colocar sobre o sorvete) também é lendária, assim como seu bolo de nozes de pessach (festa judaica em que não se pode comer nada com fermento), seus bolos de mel em Rosh Hashana (ano-novo judaico, quando se deve comer e oferecer coisas doces e feitas com mel), marzipan (100& natural) e geléias deliciosas de laranja, tangerina, morango, que chegavam aos potes e de acordo com a fruta que estivesse "na época". O charosset da Vovó Lydia é o melhor que existe. Charosset é mais uma comida de pessach, que deve ter a cor do barro para lembrar o trabalho árduo dos judeus escravizados pelo Faraó no Egito. Cada família tem a sua receita, dependendo da sua origem. A maioria das pessoas não gosta muito de charosset, mas nós AMAMOS. E cada um ganha seu potinho pra comer com matzá. É, nossas tradições no calendário judaico giram em torno da comida dela. Fora do calendário judaico também. Alimentar os outros é uma forma de carinho, não é? Com o carinho que aquela comida era preparada, tenho certeza que sim!

Esses dias fiquei bem triste. Vovó não é mais a mesma. Já passou dos 80 anos, e a idade começa a mostrar seus sinais. Recebeu algumas encomendas pro último jantar de pessach: bolo de nozes, charosset, o de sempre. Ela teve dificuldades em fazer o que dominou melhor que ninguém durante a vida toda; olhava o caderno de receitas pra logo depois esquecer o que tinha lido, começou a chorar. Imagino a angústia de se dar conta de uma coisa dessas. Eu mesma levei um cheesecake com massa especial pra Pessach (com recheio de ricota que a vovó ensinou), e Almendrados (uns biscoitinhos de amêndoas), e todo mundo adorou. Mas não teve a mesma graça, porque eu tive que ver o bolo dela que sempre foi tão lindo e não estava mais chamando atenção, e tive que me dar conta de que minha avó não vai mais cozinhar. Não como ela fazia. Fiquei de luto pela cozinha da Vovó Lydia.

Ao mesmo tempo vi como vai ser bom pra mim concretizar nessas férias um projeto que tenho, de pegar os cadernos de receitas dela e ir testando tudo, e digitando tudo. Pena que não vou poder chamá-la pra ir pra cozinha comigo.

Dizem (meu pai) que eu herdei o dom dela pra cozinha, e que quando eu pego uma receita dela o gosto fica exatamente igual. E eu ficava toda orgulhosa, afinal esse é o maior dos elogios. Agora esse orgulho vem com uma ponta (bem grandona) de melancolia. Eu não queria cozinhar melhor que a minha avó.

Espero me tornar uma boa iidishe mamma sefaradi, como meu pai também diria, e perpetuar muitas dessas tradições de família. Espero que meus netos um dia comam uma burreca (quase) igual à dela, e que eu fique sempre achando que a dela era melhor, afinal. Espero um dia ser tão querida quanto ela é.

3 comentários:

  1. Lucia, querida sobrinha, voce nao apenas se revela na cozinha, mas tambem na escrita!
    Diante destas evidencias, so posso comentar que ambas "expertises" so funcionam se recheadas de amor!
    Plagiando Milton Nascimento eu diria que "certas cancoes que ouco calam tao dentro de mim que perguntar carece, como nao fui eu que fiz?"
    Voce disse tudo!
    Sinta-se abracada!
    TG

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  2. Lú, impossível não me emocionar com tamanha homenagem à Vovó Lydia... Na vida só colhemos aquilo que plantamos.
    Me sinto imensamente feliz de ter uma filha tão sensível! Um grande beijo!

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  3. Oi gente!
    Que bom que pessoas queridas passaram aqui pra ler meu texto...
    Muitos beijos!

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